A
BUSCA DA ALMA
Ercilia
Zilli
Para falarmos sobre a busca da alma, partimos da premissa da sua
existência, conforme a entendemos na doutrina espírita, ou seja, na qualidade de
espírito, portador de uma consciência, em constante processo da ampliação.
Entendendo que na criação divina, tudo obedece a um propósito, a
existência da alma também tem um objetivo, que nos parece ser o da eterna busca
da evolução e a conquista do estado de perfeição.
Vamos usar o mito de Eros e Psique para refletirmos como essa busca
se realiza. Lembramos aqui, o conceito de Mircea Eliade, que nos diz que o mito
sempre conta uma história sagrada, portanto, de compreensão espiritual. O mito
representa, ainda, a forma como o homem de todos os tempos tenta entender os
fatos e a vida de uma perspectiva espiritual, buscando compreender como e porque
ocorrem.
Conta o mito que Eros, ou Cupido, deus do amor, era o mais belo entre
os deuses e representava a força fundamental do mundo. Era o intermediário entre
os deuses e os mortais, unia o todo a si mesmo e simbolizava a capacidade de
cooperar com os mortais dia e noite nas conquistas e no amor. Para a
psicanálise, Eros é o conjunto de tendências construtivas.
Psiquê era uma jovem que, apesar de linda, não conseguiu casar-se.
Seus pais buscaram o Oráculo, que os orientou a deixa-la no alto de uma
montanha, para que se casasse com uma serpente, a qual representa a psique
inferior, o psiquismo obscuro, o que é incompreensível e misterioso, a
fecundidade da mulher. Significa ainda, a cura, o terapeuta e o espírito, porém
no cristianismo, a serpente foi condenada a arrastar-se, tendo sua figura
associada ao pecado, em contraposição a todos os conceitos
anteriores.
Mesmo com medo, ela adormece e, tomada por Zéfiro, o Vento, é levada
para um rico e maravilhoso palácio. Depois de entrar na posse de tudo, vai
dormir e durante a noite recebe a visita de um ser masculino que a toma nos
braços carinhosamente. Ele volta todas as noites, mas adverte Psiquê de que ela
não deveria fazer nenhum esforço para vê-lo. Obediente, sente que gosta dele,
mas começa a ficar triste com a solidão de todos os dias e pede a essa criatura
que a deixe visitar os pais. Após muita insistência, ele
permite.
Quando volta para casa, as irmãs de Psiquê, sabendo de suas riquezas,
estranhando o fato dela nunca ter visto seu companheiro e tomadas de grande
inveja, sugerem que ele deve ser um monstro e a orientam a procurar um jeito de
ver quem ele é.
Ao retornar ao palácio, aproveita enquanto ele dorme e acende uma
lamparina. Vê que o seu amado é um lindo jovem. No entanto, deixa cair o óleo
quente sobre ele, queimando-o. Transtornado, ele vai embora, deixando Psiquê
desesperada.
Afrodite, a deusa da beleza, mãe de Eros, fica raivosa porque seu
filho a havia desobedecido para ficar com Psiquê, uma mortal, e esta ainda o
havia machucado. Psiquê procura a Beleza para saber como encontrar e ficar com o
Amor e Afrodite ordena que ela realize algumas tarefas, caso queira ficar com
Eros. Aflita, ela aceita.
Conforme a psicologia junguiana, o cumprimento dessas tarefas, está
associado ao processo de individuação feminina, ou o que este representa na
visão do homem integral, que associa a anima (feminino) e o animus
(masculino).
A primeira ação ordenada por Afrodite, a Beleza, na conquista de
Eros, o Amor, é separar, num curto período de tempo, uma grande quantidade de
grãos misturados de trigo, aveia, cevada, feijões e lentilhas. Quando Psiquê
imagina que não será capaz, surgem formigas que ajudam a cumprir a exigência de
Afrodite. Aqui, paramos mais um pouco para entender o que essa ordem representa.
Os grãos estão associados, desde todos os tempos, a alternância entre a vida e a
morte, da vida subterrânea à luz. Alguns ritos eram utilizados com o objetivo de
livrar a alma dessa alternância e fixa-la na luz. Quando vemos que o trigo está
associado à ressurreição, entendemos nessa alternância o conceito de
reencarnação.
Poderíamos estudar mais profundamente os símbolos dos outros grãos
citados no mito, mas já temos nesta altura do texto, uma visão do que a alma
procura na sua trajetória em busca da fixação na luz, no seu estado de
perfeição. Temos um apontamento bíblico que nos orienta nessa
compreensão:
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de
trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só;
Mas se morrer, produzirá muito fruto”. João, 12:23
As formigas representam a atividade laboriosa e a vida organizada em
sociedade, que tem a previdência na sua estrutura. Significa também a energia
que circula nas entranhas da terra, prestes a manifestar-se como água ou
nascente. Segundo o Talmude, as formigas representam a honestidade. Logo, esse
processo de alternância significa a jornada da alma buscando a sua elevação e
integração com o amor através das reencarnações sucessivas, fazendo parte de uma
sociedade organizada e previdente, com a energia da honestidade e a pureza das
nascentes, das águas que representam a fluidez das emoções equilibradas.
Entendemos também, que a presença das formigas aponta que nunca estamos sozinhos
diante das nossas provas, mas sempre amparados.
A primeira tarefa mostra a necessidade de morrer e renascer para, um
dia chegar à Luz. Surge o conceito de organização e de uma sociedade
solidária.
Psiquê volta à presença de Afrodite, que ainda insatisfeita, exige
mais uma tarefa. Quer um pouco de lã dourada proveniente de umas ovelhas muito
bravas. Mais uma vez aflita, recebe a orientação de um junco que a orienta a
esperar o momento do descanso das ovelhas para não ser atacada. A ovelha, da
mesma forma que o carneiro e o cordeiro, tem a sua imagem associada ao instinto,
à ação, à força genésica. Ela afugenta feras, protege rebanhos e educa pastores.
É a sublimação do instinto, do amor que se oferece à morte para a salvação dos
pecadores, conforme vemos na doutrina católica. Como pecado, etimologicamente,
significa ignorância, entendemos que pecadores são aqueles que desconhecem a Lei
Divina.
O ouro é o símbolo do conhecimento, da imortalidade, da perfeição, da
fecundidade, riqueza, dominação, além de ser uma arma de luz. O junco, o que
aconselha, é aquele que se verga mas não se quebra, que aprendeu a observar e a
esperar o momento oportuno. Aqui, Psiquê aprende a buscar o conhecimento, a
noção de imortalidade e o poder da luz, a ter paciência, para que, com seus
instintos sublimados, não seja apenas uma fera a ser afugentada, mas entenda que
a doação e a busca do conhecimento a fortalecerão na conquista do Amor. E, mais
uma vez, a ajuda está ao lado dela. Aprende ainda, que no processo evolutivo,
muitas vezes terá que se vergar e que sua força consiste em nunca se quebrar ou
deixar-se abater pela magnitude dos obstáculos à sua frente.
Volta a Afrodite, mas ainda não é suficiente e a terceira tarefa
consiste em buscar um jarro de água de uma montanha muito alta que é guardada
por um dragão. Diante do desespero de Psiquê, surge uma águia que a ajuda,
enchendo a jarra com a água pedida.
A águia é um símbolo muito antigo e o coletivo do Pai e de todas as
figuras ligadas à paternidade, de força, coragem e clarividência. É a rainha das
aves, representando os estados espirituais superiores. É a mensagem do Alto,
acima das contingências humanas. Como todo símbolo, tem o seu lado a ser
desenvolvido e neste caso, pode representar o desejo de poder inflexível e
devorador.
A montanha surge como a busca de elevação espiritual, da pureza, da
segurança e da transcendência. É o centro e o eixo do mundo, a terra que se
eleva ao céu e a morada de seres celestiais. Lembremo-nos de que Moisés recebeu
os Dez Mandamentos numa montanha e, Jesus nos deixou os mais preciosos
ensinamentos no Sermão da Montanha. Apesar do dragão, em algumas culturas, ser o
símbolo do mal, ele é o guardião dos tesouros ocultos da imortalidade.
Representa uma conquista difícil, pois é ambivalente. Se Psiquê não consegue
lidar com essa potência celeste, criadora e ordenadora, pode ter uma queda
dramática. No entanto, a águia surge para ajuda-la. O jarro, também usado como
urna funerária, representa a abundância e guarda a bebida da imortalidade. É a
fonte da vida física e intelectual e a volta às origens. A Alma aprende, na
terceira etapa a fazer escolhas cada vez mais complexas sobre o que significa o
verdadeiro encontro com o Amor. Deve elevar-se espiritualmente e alcançar o
estado de pureza, entendendo a magnificência do Pai Criador e Ordenador. Sua
relação com o Pai surge de maneira mais consistente e começa a ter mais
consciência de Sua atenção constante.
Mas, ainda assim, a Beleza não se contenta e ordena mais uma tarefa.
Quer que Psiquê, a Alma, desça ao mundo inferior, o Hades, e peça para Perséfone
um pouco da sua própria beleza, guardando-a numa caixa que não deveria ser
aberta.
Psiquê considera essa tarefa muito difícil e quer jogar-se de uma
torre para chegar ao Hades, mas uma torre a ensina como agir para evitar os
perigos da jornada. O Hades, também conhecido como inferno ou Plutão, é um reino
invisível e muito temido, dono das infinitas riquezas da terra, da produção
vegetal e mineral. É o rei do submundo, cruel e implacável. A caixa é o símbolo
do inconsciente e do corpo materno, separa do mundo o que é precioso, mas
implica sempre em risco.
A torre é um símbolo ascensional, a porta do céu e seu objetivo
é restabelecer o eixo primordial rompido e por ele, elevar-se a Deus. Uma parte
é subterrânea, outra é na superfície e, outra ainda, é no céu. Na parte superior
ficava um templo que representava a morada dos deuses. Além de representar as
etapas do crescimento espiritual, a torre aponta o passado, o presente e o
futuro da evolução. Psiquê não resiste e abre a caixa, caindo em sono
profundo. Para completar, exige que Psiquê desça às profundezas do conhecimento
da natureza humana para encontrar a beleza das grandes provas e do entendimento
de que, mesmo nos momentos de maior dificuldade, a Alma cresce e, em todas as
circunstâncias, encontra a proteção e a orientação apropriadas ao
momento.
Quando Psiquê adormece, Eros vai ao seu encontro e a reanima com um
beijo. Depois procura o grande deus Zeus e implora que acalme a sua mãe e
confirme o seu casamento com Psiquê, tornando-a imortal. O beijo surge como
símbolo de união e adesão mútua, de espírito a espírito. É associado ao beijo de
Deus. A boca é o ponto de saída, fonte do sopro e a encarnação entre o verbo e a
natureza humana, que está evoluindo. É a concórdia, a submissão, o respeito e o
verdadeiro amor.
A Alma para conseguir a fusão com o Amor, precisa vencer muitas
etapas.
Nesse processo, o entendimento sobre Eros, o Amor, amadurece e a sua
integração com Psiquê, a Alma, acontece amorosamente, alcançando o ápice da
evolução espiritual. Dessa fusão, surge o espírito adulto, consciente, cuidador,
forte, terno, generoso e portador de uma pureza que não se corrompe e que não se
destrói.
É o que imaginamos sobre o ensinamento de Jesus: “Eu e o Pai somos
um’.
Não temos a pretensão de esgotar todas as possibilidades do mito e,
tampouco, compreender todo o processo de evolução espiritual, mas apontar quanto
é grande o esforço para conquistarmos a beleza espiritual pura e fecunda e o
difícil caminho de voltarmos ao nosso ponto de origem na condição de filhos
responsáveis e capazes de entender as maravilhas da Criação Divina e das Leis de
Deus.
É uma volta às origens, como sinaliza a parábola do Filho Pródigo e
como assinala Jesus: “EU E O PAI SOMOS UM”.
Ercilia
Zilli - CRP n° 06/13.432-7
Psicóloga
Clínica, Mestre pelo Programa de Ciências da Religião – PUC, Pós-graduada em
Administração para Organizações do Terceiro Setor pela Fundação Getúlio Vargas,
Presidente da ABRAPE – Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas, Membro da
Associação Americana de Aconselhamento (ACA, Membro da Associação dos Valores
Espirituais, Éticos e Religiosos em Aconselhamento (ASERVIC), Membro da
Associação Internacional dos Profissionais de Gerenciamento de Carreira (IACMP)
nos EUA, Apresentadora do programa “Novos Rumos” da ABRAPE, na Rede Boa Nova –
AM 1450. Autora do Livro “O Espírito em Terapia – Hereditariedade, Destino e
Fé”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário