É difícil ver uma melhor descrição da inveja do que a figura que poderia
ser a de uma mistura de Lênin e Stálin, traçada de maneira nítida por Nabokov.
Todas as vezes que ele monta essa figura, em contos ou em episódios biográficos,
não nos deixa dúvidas: ele foi um dos poucos humanos que viu de perto esse
demônio. E o faz sem um traço de ressentimento ou corrupção. É um trabalho de
mestre. Poucos conseguem estar tão perto do diabo sem ceder. Nabokov mostra tudo
que move vários revolucionários bolcheviques. Nada além do que Marx chamou de
"comunismo de inveja": socializar para se tornar, na prática, os novos donos, os
novos proprietários, agora mais legítimos ainda que os antigos - a legitimidade
vinda "do povo".
A inveja atinge muita gente. Dizem que quando ela chega, entra não pela
porta, mas por vãos dos armários. Não se aloca no cérebro, mas no coração.
Depois, atravessa a glândula pineal e vai para a alma. Quando volta, já está na
mente. Toda a inteligência é comandada por ela, a partir daí. Não à toa Adorno
escreveu que "a inteligência é uma categoria moral". São mores, e não
ethos, os elementos que comandam a inteligência. A inteligência do
invejoso é paradigma disso.
A inveja atinge a esquerda e a direita. Quem viu Mussolini manter Gramsci
na prisão até os últimos dias da vida do deputado italiano, pode saber bem o que
é a inveja. Tendo sido colega de Gramsci no parlamento, Mussolini se remoía ao
ver os discursos perfeitos do sardo. Quando conseguiu o poder, tratou de
eliminar aquele que o havia ridicularizado. Mussolini, no fundo, queria apenas
uma coisa: ser Gramsci.
Um escritor célebre me contou certa vez que entrou em uma lista de internet
de sua universidade, preocupado em responder questões a respeito de seus livros.
Eis, então, que começou a ser agredido pessoalmente por vários desconhecidos.
Eram pessoas com nomes e RGs, certamente, mas que nunca haviam publicado nada
nem haviam se destacado em seus lugares de trabalho. Usavam das possibilidades
da internet para dar vazão para a inveja. Ele concluiu, então, que não deveria
sair da lista, mas que responderia somente aos críticos não-invejosos. Ficou
anos na lista, sem poder escrever! Então, esqueceu o que prometeu e voltou a
escrever. Não deu mais bola para inveja e escreveu contra ela -
diretamente.
No mundo filosófico não há ninguém que descreveu a inveja melhor que
Nietzsche. Aliás, foi ele, e não os psicólogos e menos ainda Freud, que
conseguiu colocar a inveja como categoria descritiva. A tipologia de Nietzsche,
quando ele fala do "fraco" ou "escravo" ou "doente", é a quemostra alguém que
antes de ser só ressentido, é invejoso. Está corroído. O "fraco" de Nietzsche
não é apenas a antítese do "forte" - ambos desprezíveis para o filósofo. O
"fraco" tem um tacão no peito, que o sangra dia após noite: a inveja. O invejoso
não aparece. Ele se esconde. Está resguardado pelo seu nome que é uma capa, pois
ninguém sabe quem é ele. O nome de alguém que nada fez é um nome que vale como
uma máscara de ladrão. Pode usar o nome, mas o nome não diz nada. É assim que o
invejoso, o "fraco" de Nietzsche, age rotineiramente: ele é como o inseto -
também um exemplo nietzschiano - que muda de cor para se parecer com a paisagem.
A covardia e a inveja são irmãs.
Todavia, não foi Nietzsche, e sim Diderot, quem melhor qualificou a inveja
por meio daquilo que mais a incomoda: o talento. As pessoas invejosas, de fato,
não invejam o outro por terem dinheiro ou qualquer coisa "material". O
verdadeiro invejoso, inveja o outro pelo talento que o outro possui. Diderot
escreveu "o talento é imperdoável". A sabedoria e grandesa dessa frase ecoa
todos os dias no mundo da cultura: um artigo censurado, um livro queimado, um
autor posto no pelourinho, um e-mail imbecil contra um escritor ou pensador, uma
lei contra a liberdade de expressão, a perseguição (simbólica ou física) de um
superior - tudo isso se apresenta como "moral" ou "política", mas quem quiser
ver verá a mão da inveja nisso tudo. Se assim fizer, acertará mais que os
teóricos. Basta olhar para o canto da covardia. O invejoso nunca debate, nunca
chama para a discussão, ele sempre dá o tapa e se esconde sob nomes que não
dizem nada, pois ele teme o confronto aberto, mesmo sendo ele o que não vai
perder nada, pois nada tem. Na verdade, ela sabe que o talento do invejado é o
que ele não tem, é o que ele queria ter, e portanto ele sabe que no campo
aberto, com argumentos racionais, ele não poderia debater. Toda vez que alguém é
perseguido pelo que escreve, pelas posições lúcidas, está vigente no horizonte o
que Diderot falou: "o talento é imperdoável". Abre-se o cadafalso para o
invejado. Por isso, por saber que não faz justiça, apenas age junto com a
inveja, o carrasco usa máscara.
Os sociólogos, quando fazem sociologia, tendem a desacreditar a inveja. As
grandes teorias sociais não possuem espaço para a inveja. Quem quiser falar em
teoria e vier a afirmar que um ato ocorreu por inveja, é desacreditado. Ou seja,
a inveja, ela mesma, já tomou posse inclusive dos instrumentos teóricos. Ela
comanda a teoria, exatamente para se mostrar como desimportante. Assim, pode
agir mais ainda no anonimato. Os clássicos da sociologia, como Marx, Durkheim e
Weber, quando pensaram teoricamente, não deixaram espaço para a inveja. Com
isso, deram liberdade para ela continuar agindo. A inveja foi vista por eles
como contigente, não como estrutural. Mesmo quando eles tentarem fazer
psicossociologia, eles não souberam ver a inveja na sua importância. Seus
"tipos" ou "atores" não foram caracterizados pela inveja, ainda que pudessem ser
caracterizados por outras faltas ou virtudes "psicológicas", digamos assim. A
inveja sabe como ninguém usar de nomes que não dizem nada. E nisso, ela só se
amplia e se alimenta. Assim, este texto aqui, vai atingir diretamente o
invejoso. Reparem como ele não irá responder a este texto diretamente, mas irá
responder a outros textos meus, mas sem argumentos sobre o texto, apenas fará
isso tentando o ataque lateral, tentando o ataque "pessoal" no sentido mesquinho
dessa prática. Aguarde e verão o invejoso apontar a cabeça. Logo logo.
Paulo Ghiraldelli Jr.
"O filósofo da cidade de São Paulo"
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